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A ausência do conflito entre a Lei da CPR e a Lei da RJ

Autor: Deborah Sousa

Data: 04/10/2024

A Cédula de Produto Rural (CPR), criada pela Lei 8.929/1994, é, conforme definição do doutrinador Marcus Reis (2023, p. 169), “um título à ordem, líquido e certo, representativo de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia cedularmente constituída”.

O referido título foi criado com o objetivo de fomentar o financiamento das atividades envolvidas na cadeia produtiva, comercial e financeira do agronegócio, constituindo importante instrumento de captação de recursos para o produtor rural. A CPR pode ainda ser lastreada em produtos agropecuários, o que garante maior segurança e confiabilidade às operações comerciais e financiamentos na cadeia produtiva.

A CPR é, portanto, ferramenta fundamental no agronegócio, visto que os financiamentos desempenham um papel vital na atividade agrícola, possibilitando o crescimento, a inovação e a sustentabilidade do setor, além de contribuírem para a segurança alimentar e o desenvolvimento econômico de nosso país.

Nesse contexto, a Lei n°. 14.112/2020 trouxe importante alteração na redação do artigo 11 da Lei 8.929/1994, o qual passou a prever a extraconcursalidade dos créditos decorrentes da Cédula de Produto Rural física, com adiantamento parcial ou integral do preço ou representativa de operação de barter.

Nos termos da nova redação do artigo:

Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto

Evidente que a referida alteração legal tem como objetivo, sobretudo, a proteção da economia nacional, visto que o agronegócio é responsável por grande parte do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro1.

Críticas acerca da exclusão da CPR

Inicialmente, destaca-se vertente que defende que a Lei nº 14.112/2020 modificou o artigo 11 da Lei nº 8.929/94 e não a Lei nº 11.101/2005, a qual aborda de forma expressa os créditos não sujeitos à RJ, em especial nos parágrafos do artigo 49. Para os defensores dessa tese, o rol do artigo 49, seria taxativo, e, por consequência, o texto do artigo 11 seria incompatível com a Lei específica que disciplina o tema.

Em que pese a Lei nº 14.112/2020 tenha incluído no artigo 49 os parágrafos 6º ao 9º, não foi acrescido parágrafo relativo à CPR física com adiantamento parcial ou integral do preço ou troca por insumos. Contudo, resta evidente que o rol do referido artigo não é taxativo.

Pois bem, o artigo 49 também deixa de prever a exclusão dos créditos decorrentes das despesas processuais com a recuperação judicial, dos créditos de natureza tributária e dos créditos de fornecedores relativos a contratos celebrados após a concessão da recuperação judicial, dentre outros. Porém, ainda assim, a extraconcursalidade desses créditos é matéria consolidada na doutrina e jurisprudência. Desse modo, absurda qualquer alegação de que o rol do artigo 49 seria taxativo.

Além disso, não há qualquer contradição ou incompatibilidade entre a regra prevista no artigo 11 da Lei da CPR e a Lei nº 11.101/2005.

De acordo com Norberto Bobbio (1999, p.85), há antinomia quando: “1) entre uma norma que ordena fazer algo e uma norma que proíbe fazê-lo (contrariedade); 2) entre uma norma que ordena fazer e uma que permite não fazer (contraditoriedade); 3) entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer (contraditoriedade)”.

Para as situações em que há antinomia (conflito de normas) aparente, o nosso ordenamento jurídico, em especial no artigo 2° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), prevê critérios para a sua devida solução.

Assim, ainda que houvesse algum conflito aparente entre a nova redação do artigo 11 da Lei nº 8.929/94 e a Lei de Recuperação Judicial, este facilmente é resolvido através do critério cronológico (art. 2°, §1° da LINDB) e do critério da especialidade (art. 2°, §20 da LINDB).

De acordo com o critério cronológico, a “lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Desse modo, ainda que houvesse alguma incompatibilidade entre o artigo 11 da Lei

CPR, que previu a extraconcursalidade da CPR física com adiantamento do preço ou de insumos, e a Lei da RJ, o referido artigo, que teve a redação dada pela Lei nº 14.112 de 24 de dezembro de 2020, deve prevalecer sobre a Lei nº 11.101 de 09 de fevereiro de 2005, pois mais recente.

Ainda, pelo critério da especialidade, segundo o qual a normal especial prevalece sobre a geral, o artigo 11 da Lei nº 8.929/1994 também prepondera, visto que trata especificamente sobre a Cédula de Produto Rural, não havendo qualquer dispositivo específico em relação a esse título da Lei nº 11.101.

Outra crítica relevante refere-se ao atingimento da finalidade da recuperação judicial e ao princípio da preservação da empresa.

Nos termos do art. 47 da Lei 11.101/2005 (Lei de Falências): “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Para os defensores da mencionada corrente, a exclusão da CPR Física do regime da recuperação judicial, iria contra o objetivo principal da RJ, que é o soerguimento do produtor rural.

A referida tese é igualmente absurda, tendo em vista que, apesar de através da recuperação judicial buscar-se a preservação da empresa, é necessário sopesar também outros interesses, em especial, o equilíbrio da cadeia produtiva do agronegócio.

Nesse contexto, deve-se obedecer à vontade do legislador, que, sem dúvidas, é a proteção da viabilidade do financiamento do agronegócio brasileiro pelo mercado privado, de modo a trazer inovação, celeridade e modernidade a esse setor indispensável.

Por fim, destaca-se a existência de vertente que defende a sujeição da CPR física à recuperação judicial, caso outorgado grão em penhor, visto que, segundo o Código Civil, trata-se de garantia real que, por sua vez, é sujeita à recuperação judicial.

Ora, mais uma vez a conclusão é simples, se o legislador dedicou artigo específico a determinar expressamente que a CPR física não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, é inviável aplicar-se a regra geral no que se refere às garantias, sob pena de violação à lei federal.

Portanto, tecidas as considerações acima, resta claro que não há qualquer incompatibilidade ou conflito entre o artigo 11 da Lei nº 8.929/94 e a Lei nº 11.101/2005, devendo lhe ser garantida a sua plena aplicação.

  1. 1 https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx ↩︎

Referências

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999, p. 85.

REIS, Marcus. Crédito Rural. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 169.

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